Passados quase oito anos, analisamos novamente o fatídico Grande Prêmio da Malásia de 2015 volta a volta até o incidente entre Valentino Rossi e Marc Márquez. Um incidente que marcaria a carreira dos dois campeões para sempre.
Márquez voltou aos noticiários essa semana com o lançamento da série “Marc Márquez: ALL IN” que revela detalhes pessoais da sua temporada 2022 e outros assuntos. Um deles, como não poderia deixar de ser, é a rivalidade com Valentino Rossi, que explodiu de vez no GP da Malásia de 2015. Mas antes de entrar de cabeça na corrida, um pouco de contexto histórico.
A etapa estava tensa antes mesmo de começar. Na quinta-feira, durante a tradicional conferência de imprensa que abre os trabalhos para a corrida, Rossi surpreendeu a todos com declarações bombásticas. O italiano disse que Márquez o havia prejudicado deliberadamente no GP da Austrália, uma semana antes, para impedir o seu décimo título e ajudar o compatriota, Jorge Lorenzo.
“Se tivermos outra corrida como a de Phillip Island temos que falar com ele, porque durante a corrida foi mais difícil de entender, mas depois, quando vi a corrida mais tarde, ficou muito claro que ele jogava muito conosco“, disse Rossi. “Porque principalmente acho que o objetivo dele não é apenas vencer a corrida, mas também ajudar o Lorenzo a ir longe e tentar tirar mais pontos de mim. Esse é Marc.“
Márquez ficou visivelmente contrariado e na mesma coletiva tratou de responder: “Claro que não. Claro que fiz minha corrida e, de fato, se quisesse ajudar Lorenzo, não o ultrapassaria na última volta, não forçaria ao limite e não correria o risco. Eu não sei por que eles dizem isso“. Na ocasião, Andrea Iannone também estava presente e endossou as palavras de Rossi. Lorenzo ficou do lado de Márquez: “Me ajudou muito, especialmente na última volta“, disse de forma irônica.
O GP da Austrália de 2015 foi uma das melhores corridas eu já vi. Márquez tirou a vitória de Lorenzo em uma manobra de arrancar os cabelos na última volta, enquanto Iannone fez o mesmo com Rossi em terceiro. Os quatro cruzaram a linha de chegada separados por apenas 1 segundo. 52 ultrapassagens foram realizadas entre eles ao longo da prova. Depois, Márquez justificou a oscilação de performance devido a um superaquecimento dos seus pneus.
Rossi comandava o campeonato com 11 pontos de vantagem para Lorenzo, uma liderança que vinha diminuindo. O italiano havia vencido três provas; o espanhol seis, mas sem a mesma consistência. Márquez já não tinha mais chances. 2015 vinha sendo o seu pior ano até então, com uma Honda RC213V extremamente instável que lhe rendeu muitas quedas mas, ainda assim, cinco vitórias.
Na qualificação de Sepang, Dani Pedrosa surpreendeu arrecadando a pole position com o tempo de 1min59s053. Márquez ficou em segundo, 0s409 atrás, e Rossi em terceiro deixando Lorenzo na segunda fila, ao lado de Cal Crutchlow e Iannone. Quando as luzes vermelhas se apagaram, o espanhol ainda teve uma má largada caindo para a sexta posição. É aqui que começa a nossa análise.
Volta 1: Pedrosa mantém a ponta seguido de Márquez e Rossi. Lorenzo cai para a sexta posição, atrás de Andrea Iannone e Andrea Dovizioso, então companheiros na Ducati. Mas o espanhol consegue superar os dois de uma só vez na curva 4 em uma manobra realmente impressionante.
Volta 2: Lorenzo encosta em Rossi. A ultrapassagem acontece já na curva 1. Rossi tenta revidar, mas o espanhol não dá nenhuma chance. É aqui que o pentacampeão, com pista livre, faz a volta mais rápida da corrida, 2min00s606 e se aproxima rapidamente de Márquez.
Volta 3: Na freada para a curva 4, Márquez parece perder o ponto de frenagem e Lorenzo passa sem problemas. Ou teria sido liberada a passagem? A resposta poderia vir da câmera da Yamaha, que nunca foi mostrada. Márquez não esboça qualquer sinal de reação e fica na alça de mira de Rossi.
Volta 4: Rossi supera Márquez na curva 4. O espanhol não tenta nenhum revide. Mas Valentino comete alguns erros na sequência; sai do ponto ideal de frenagem na curva 9 e novamente na curva 15, o que mantém Márquez próximo. Mesmo assim, o italiano faz aquela que seria a sua melhor volta na corrida, 2min01s127.
Volta 5: Como entrou mal posicionado na reta, Rossi cruza a linha de chegada com Márquez colado, que o ultrapassa na freada para a curva 1. Rossi imediatamente dá o troco no grampo a seguir. Márquez o supera novamente na freada para a curva 4 e os dois iniciam uma sequência eletrizante de troca de posições com direito a encontrões e esbarrões. Rossi quase cai na curva 11.
Observação: vale notar que Márquez manteve-se comportado durante toda a volta 4 sem esboçar nenhum revide direto a Rossi. No entanto, tudo muda na volta 5, quando passa a apresentar um comportamento muito mais agressivo, que perduraria até o momento final.
Volta 6: Pedrosa e Lorenzo já abrem 2 segundos à frente. Rossi supera Márquez na curva 7 e tenta tirá-lo da trajetória ideal alargando o traçado. O italiano olha para trás e faz um sinal. Mas em seguida erra de novo, na curva 9, e Márquez se reaproxima. A ultrapassagem do espanhol acontece na curva 14.
Volta 7 [o momento do incidente]: Valentino inicia a volta atrás de Márquez parecendo analisar o seu comportamento. Ele espera até a curva 8 para ultrapassar novamente, mas o espanhol revida imediatamente e de forma bem contundente. Rossi emparelha ao lado de Márquez na curva 14 para tirá-lo da trajetória, onde diminui a velocidade, eles se tocam e o piloto da Honda cai.
Daí em diante a corrida acabou para Márquez, que ficou com a moto danificada, e também para Rossi, que se limitou a cruzar a linha de chegada. É interessante notar que, durante todo esse período, Pedrosa e Lorenzo pareciam andar em formação. Os dois viravam idênticos em 2min00s até a volta 5 quando, ao mesmo tempo, passaram a virar em 2min01s. Rossi nunca andou melhor do que 2min01s127. A melhor de Márquez foi 2min00s818 na segunda volta. Você pode ver a relação aqui.
É importante destacar que Rossi parece ter sentido a pressão que ele mesmo colocou sobre os ombros ainda na conferência de imprensa. Ao contrário de Lorenzo, que passou e abriu de Márquez, sem erros, o italiano por várias vezes passou do ponto de frenagem, sem concentração. Para mim, fica evidente que a presença do espanhol o incomodava a ponto de não pilotar corretamente.
Opinião pessoal: não há como provar factualmente, pelas imagens, que Márquez estava atrapalhando Rossi deliberadamente. Se esse fosse o objetivo, acredito em tempos de volta mais altos. O que fica evidente é que nenhum deles conseguiu se firmar na frente para abrir e alcançar os líderes. Márquez esperou uma volta para ver se Valentino se afastaria, mas depois resolveu partir para o ataque e ver o que ele faria. A tensão pode ter contribuído para seguidos erros de pilotagem.
Lorenzo claramente era o mais rápido, mas nunca pareceu se esforçar para alcançar Pedrosa, o que é estranho. Rossi era o mais lento dos quatro. Isso fica comprovado na classificação das voltas mais rápidas, onde o italiano é o quarto, 0s309 atrás de Márquez, uma diferença considerável. Porém, fica a dúvida se o ritmo teria sido melhor se um não estivesse no caminho do outro. Durante a briga, nenhum dos dois baixou de 2min01s. Veja na tabela abaixo.
Após a corrida, Rossi estava completamente convencido de que Márquez o atrapalhara deliberadamente: “desde quinta-feira, não me arrependo, mas com certeza a realidade é que fiz Márquez ficar mais nervoso e mais zangado; eu o fiz reagir da pior maneira. Mas o que você pode fazer? Se eu não tivesse dito nada, acho que ele teria feito mais ou menos a mesma coisa. Eu pensei que se dissesse a verdade isso o faria pensar um pouco mais, mas sua reação foi a oposta. Talvez ele prefira o Jorge. Mas no futuro agora eu vou evitá-lo“.
Márquez não tinha dúvidas de que fora empurrado e era a vítima de toda a situação: “Para mim está claro, é fácil de explicar, é visível na TV, do helicóptero e de vários ângulos. Eu não estava na frente, mas senti que poderia ir mais rápido e alcançar a liderança. No final, para mim, foi um ataque, acabei no chão, com zero pontos e ele com 16 pontos. No futebol isso dá cartão vermelho na hora“, reclamou.
Lorenzo, por sua vez, afirma que não tentou vencer por causa causa do calor. Mas é de Pedrosa que vem a declaração mais interessante: “essa pista é muito exigente para essa moto, especialmente a moto desse ano que move-se muito para todos os lados, então você precisa se esforçar muito sobre ela fisicamente […]”, o que de certa forma explica o comportamento de Márquez. Isso foi dito antes de ver as imagens.
A decisão dos comissários de corrida liderados por Mike Webb também foi muito polêmica. Alguns defendiam que a punição deveria ter vindo ainda durante a corrida na forma de um ride through, ou algo assim. Mas os comentários do britânico no meio do furacão são surpreendentemente equilibrados.
“Marc explicou que sua pilotagem estava sendo normal enquanto esperava que seus pneus oferecessem o melhor desempenho e, assim, rodassem rápido quando possível, e que ele desacelerou onde precisava. Valentino era da opinião de que Márquez estava deliberadamente diminuindo o ritmo e fazendo algo antidesportivo. Ouvimos ambos e acreditamos que há culpa em ambos os pilotos, mas, com o regulamento em mãos, Márquez não fez nenhum contato e não quebrou o regulamento, mas também acreditamos que seu comportamento estava causando problemas para Rossi, que reagiu. Infelizmente, ao fazer isso, ele violou os regulamentos.” (Mike Webb)
É realmente uma questão muito subjetiva. Se você torce para Rossi, certamente encontrará argumentos para defendê-lo. Se você torce para Márquez, também. Hoje, passados sete anos e meio, sabemos melhor o quanto a Honda RC213V é realmente uma motocicleta muito física e difícil, que exige uma pilotagem agressiva e centrada na roda dianteira. Na época isso não era tão claro.
Uma demonstração aconteceu recentemente, no GP de Aragão de 2022, a volta de Márquez após a quarta cirurgia no braço direito: sua pilotagem instável acabou derrubando Fabio Quartararo – novamente um piloto da Yamaha disputando o título – e Takaaki Nakagami na primeira volta. Ou seja, a pilotagem agressiva do espanhol ainda está lá. É parte do seu estilo e da Honda.
Mas Márquez poderia ter dado um fim à questão no GP da Valência, a etapa seguinte que decidiu o título de 2015. Em sua nova série, o espanhol admite que não tentou vencer Lorenzo, mesmo estando com um ritmo melhor nas últimas voltas. O espanhol disse que estava muito magoado com Rossi e com sua torcida nos dias que se seguiram a Sepang. Mas não há como negar que ele foi muito mais suave nas disputas com Lorenzo nessas três últimas corridas, pelo menos.
O fato é que ambos, Rossi e Márquez, perderam muito com o imbróglio. Talvez se Valentino tivesse sido menos conspiracionista e optado pelo silêncio poderia estar com o 10º título agora. Se Marc tivesse ficado na sua (como fizera em Valência) poderia ter mantido a base de fãs de Rossi e menos haters hoje em dia, algo que ainda luta para reverter. Quem sabe? Reveja Sepang 2015 na íntegra abaixo.