Muitos questionam por que a Kawasaki não está na MotoGP. Bem, ela já esteve e a história não foi das mais felizes. Essa história cheia de percalços é a que contamos em detalhes aqui.
Embora tenha tido sucesso nas pistas em muitos aspectos, a relação da Kawasaki com o Mundial de Motociclismo sempre foi complicada. Ao contrário das rivais japonesas, sua entrada veio mais tarde, já no final da década de 1960, com o modelo H1R, de três cilindros e dois tempos.
Foi nessa época que a marca conquistou a sua primeira e até hoje única vitória nas 500cc, no GP da Espanha de 1971, com Cristian Ravel. O francês, no entanto, morreu tragicamente no GP da Bélgica, algumas semanas mais tarde e a Kawasaki se retirou ao término da temporada 1972.
O retorno aconteceria apenas em 1980 com a Kawasaki KR500, motocicleta com um motor dois tempos de 494 cm³ e chassi monocoque de alumínio semelhante ao da Honda NR500 de 1979. O principal piloto da marca nessa fase foi o sul africano, Kork Ballington.
Ballington conquistou dois terceiros lugares, no GP da Finlândia e da Holanda de 1981. A KR500 era potente, mas ainda muito pesada em comparação com a concorrência e, apesar de constantes aprimoramentos, a Kawasaki decidiu retirar-se mais uma vez ao fim de 1982.
Levaria 20 anos para a Kawasaki se animar em retornar ao Campeonato Mundial, graças às novas regras introduzidas na temporada 2002. Naquele ano, a Classe Rainha voltou a contar com motores de quatro tempos, o que abria um novo leque de possibilidades.
A Kawasaki foi campeã no WorldSBK em 1993 com Scott Russell, mas desde então vinha perdendo interesse pelo campeonato. Na época, os motores de quatro cilindros eram limitados a 750cc, enquanto os de dois cilindros (como a Ducati) podiam chegar a 1000cc. Uma vantagem intrínseca.
Na nova era da MotoGP, a capacidade cúbica poderia chegar a 990cc independentemente do número de cilindros. Então, em 10 de janeiro de 2002, o conselho de administração da Kawasaki Heavy Industries tomou a decisão de ingressar novamente na Categoria Rainha do Motociclismo.
Apenas um mês depois, em fevereiro de 2002, Akira Yanagawa testou, no circuito de Sepang, o primeiro protótipo, ainda com com carburadores e chassi derivado das Superbikes. A sua maior desvantagem era o peso, 160 kg, enquanto as MotoGP já pesavam 145 kg.
No início de setembro, a Kawasaki apresentou oficialmente a nova moto, que seria chamada de Ninja ZX-RR. A essa altura, o protótipo já havia emagrecido para 145 kg, recebido um novo motor e um sistema de injeção eletrônica, o primeiro que a marca utilizava em corridas.
A estreia aconteceu no GP do Pacífico, em Motegi, com o próprio Yanagawa. Essa corrida histórica foi vencida pelo nosso Alex Barros, que fazia a sua estreia com a Honda RC211V. Na Kawasaki, por outro lado, a diversão acabou após apenas seis voltas.
Logo ficou evidente que a tarefa da Kawasaki não seria nada fácil. A temporada 2003 seria basicamente utilizada para testes em tempo real. Quatro pilotos foram escalados: o popular Garry McCoy, Andrew Pitt e, ocasionalmente, Alex Hoffmann e Akira Yanagawa.
Os resultados foram decepcionantes, para dizer o mínimo. A concorrência, principalmente a Honda, estava a anos luz de distância, especialmente quanto ao gerenciamento eletrônico de potência. A melhor posição de chegada foi a nona posição de McCoy no GP da França.
Era preciso dar vários passos a frente e, para 2004, a Kawasaki introduziu um chassi mais compacto e com um centro de gravidade mais baixo desenvolvido na Suíça em parceria com a Suter. Além disso, eles trocaram o fornecimento de pneus da Dunlop para a Bridgestone.
Isso permitiu que os engenheiros japoneses se concentrassem mais em desenvolver o motor de quatro cilindros em linha e sua parte eletrônica. Como resultado, a Ninja ZX-RR ficou claramente menor e mais esguia, enfim se igualando em aparência à suas conterrâneas Honda, Yamaha e Suzuki.
O piloto de testes, Alex Hoffmann foi promovido a condição de titular e, para substituir Garry McCoy, a Kawasaki chamou Shinya Nakano, vice-campeão das 250cc em 2000 e um dos japoneses mais promissores no início do novo milênio.
A melhora foi notável. Nakano conquistou o primeiro pódio da Kawasaki na era MotoGP, com um terceiro lugar no GP do Japão de 2004. O japonês ficou em 10ª no campeonato, com 83 pontos e a Kawasaki em quarto nos construtores, a frente de Suzuki e Aprilia.
Para 2005, o chassi recebeu aprimoramentos e o motor uma nova ordem de disparos, 0-180-0-540. Chamada de “Long Bang”, essa configuração funciona como um motor de dois cilindros em linha a 180º e proporcionou maior tração na saída das curvas e melhor estabilidade.
Na primeira etapa do ano, o GP da Espanha, Nakano chegou em quinto, o que seria o seu melhor resultado no ano. Na etapa seguinte, o GP de Portugal, Hoffmann caiu e quebrou a mão esquerda, perdendo as duas etapas seguintes.
Para o seu lugar, a Kawasaki escalou o conhecido Olivier Jacque, campeão das 250cc em 2000. Para a surpresa de todos, o francês chegou em segundo na sua estreia pela equipe, no GP da China, atrás apenas do imbatível Valentino Rossi e sua Yamaha M1.
No papel, 2005 foi o ano mais bem sucedido da Kawasaki na MotoGP. Nakano repetiu a 10ª posição no campeonato, com 98 pontos e uma campanha muito regular, quase sempre entre os 10 primeiros. No campeonato de construtores, eles novamente deixaram a combalida Suzuki para trás.
Em 2006, a Ninja ZX-RR recebeu um novo motor, mais compacto e que girava mais alto, oferecendo mais potência que o antecessor, seguramente mais de 240 cv. Na parte do chassi, a geometria básica permaneceu a mesma, apenas mais compacta graças ao novo propulsor.
Nakano permaneceu com a Kawasaki para uma terceira temporada consecutiva, mas Hoffmann foi substituído pelo estreante Randy de Puniet, que vinha fazendo bonito nas 250cc nos anos anteriores, onde já somava cinco vitórias e nove poles.
Em uma temporada muito equilibrada, com vários vencedores diferentes, Nakano chegou em segundo no eletrizante GP da Holanda, aquele em que Nicky Hayden e Colin Edwards colidiram na última curva da última volta. Mas o japonês foi o destaque da prova, andando sempre entre os primeiros.
Veloz, mas com propensão a sofrer acidentes, De Puniet teve como melhor resultado uma décima posição, no igualmente emocionante GP de Portugal vencido por Toni Elias por míseros 0s002. Mesmo assim, o francês era considerado muito promissor.
Em 2007, a FIM decidiu reduziu o deslocamento volumétrico de 990 cm³ para 800 cm³ com o objetivo de aumentar a segurança e o interesse dos fabricantes. Como resultado, a Kawasaki precisou rever inteiramente a moto para os novos regulamentos.
A equipe também passava por um momento de turbulência interna. Shinya Nakano saiu e o mesmo aconteceu com o diretor técnico Harald Eckl, presente desde o início do projeto. Rumores diziam que ele estava dando suporte técnico para um time rival, a Ilmor Suter Racing Technology Team.
Com isso, a Kawasaki resolveu liderar a equipe por conta própria do Japão. Nascia oficialmente a Kawasaki Racing Team (KRT). Para o lugar de Eckl, eles trouxeram Ichiro Yoda, um dos integrantes chave da equipe Yamaha, que dominara a MotoGP nos anos anteriores.
A Ninja ZX-RR recebeu um quadro ainda mais compacto e um motor com válvulas pneumáticas. De Puniet foi mantido e Olivier Jacque trazido de volta. Mas o francês sofreu um violento acidente no GP da Catalunha e precisou se afastar. Em seu lugar entrou Anthony West, bem conhecido dos brasileiros.
Como sempre, os resultados ficaram aquém do esperado. Mas haviam momentos de brilho, como no GP do França de 2007, que De Puniet chegou a liderar, antes de cair. No GP do Japão, o mesmo em que Casey Stoner conquistou seu primeiro título, o francês chegou em segundo.
Para 2008, a Kawasaki desenvolveu um novo motor de alta rotação apelidado de “Screamer” e divulgou um teaser nas redes sociais (acima) que se tornaria lendário. O protótipo, no entanto, tinha muitos problemas com o controle de tração e não seria utilizado em corridas.
De Puniet deixou a equipe e em seu lugar entrou John Hopkins, oriundo da Suzuki. Um piloto sólido e regular, o norte-americano trazia grandes esperanças, mas sua temporada foi muito atrapalhada por um forte acidente no GP da Holanda. Seu melhor resultado foi um quinto em Portugal.
Anthony West, por outro lado, teve uma campanha extremamente regular, só abandonando uma corrida. Porém, o ritmo de corrida era baixo e o australiano raramente cruzava a linha de chegada entre os dez primeiros. Seu melhor resultado também foi um 5ª, na República Checa.
Apesar da falta de resultados significativos, a Kawasaki tinha planos de seguir na MotoGP em 2009. Tanto é que eles contrataram Marco Melandri para ser seu principal piloto pelos dois anos seguintes. O italiano experimentou a ZX-RR nos testes de Valência e Phillip Island com resultados promissores.
Mas, subitamente, em janeiro de 2009, a Kawasaki anunciou a suspensão do seu plano de MotoGP. O principal motivo, segundo eles, foi a crise financeira mundial que se instaurou no ano anterior e que estava ocasionando a quebra generalizada de empresas multinacionais.
“Nós tomamos a decisão final de não continuar na MotoGP. É algo que estávamos considerando desde meados de dezembro. No panorama econômico atual, a menos que a situação melhore, é difícil dizer se iremos voltar“, disse o porta-voz da marca, Katsuhiro Sato na ocasião.
Ainda assim, a ZX-RR correu em 2009 sob o nome de Hayate Racing Team, uma versão reduzida da equipe. Melandri começou muito bem a temporada, conquistando um sexto, um quinto e um incrível segundo lugar no GP da França. Vai saber o que teria acontecido com apoio de fábrica…
A situação econômica melhorou nos anos seguintes, mas a Kawasaki não voltou para a MotoGP. Estima-se que o orçamento deles era de 4 bilhões de ienes, o equivalente a 30 milhões de euros e ainda assim não era suficiente. Eles, então, resolveram investir esse dinheiro no WorldSBK.
Parte da equipe criada e desenvolvida na MotoGP foi aproveitada no WorldSBK, inclusive o diretor técnico Ichiro Yoda. Os resultados não demoraram a aparecer. A primeira vitória veio em 2011. O primeiro título em 2013, com Tom Sykes. Em 2015, entrou Jonathan Rea e o resto vocês conhecem.
Por que eles não voltam para a MotoGP, é a pergunta que muitos fazem. Porque eles não precisam. Como toda empresa, seu principal objetivo é promover sua marca e o seu produto, no caso a Ninja ZX-10R. E nisso o WorldSBK é melhor, pois é a própria moto que compete nas pistas.
Na MotoGP, por outro lado, você tem que desenvolver um protótipo exclusivo, muito mais caro e sofisticado, porém com menos conexão com o comprador comum. Talvez por isso, a BMW também tenha preferido o WorldSBK e a Honda recentemente passou a investir mais nesse campeonato.