Imagine se Valentino Rossi tivesse trocado a MotoGP pela Fórmula 1 e sido campeão na Ferrari. Depois fundaria a sua própria equipe lá. Foi mais ou menos isso que aconteceu nos anos 1970 com John Surtees. E tem até brasileiro no meio.
No final dos anos 1950, John Surtees era o nome mais quente do motociclismo. Filho de um negociante de motocicletas do sul de Londres, o pequeno britânico começou nas corridas de moto com 14 anos quando venceu uma corrida de sidecar ao lado de seu pai, um expoente nessa categoria. Quando os organizadores descobriram a idade, desclassificaram a dupla!
Surtees ganhou notoriedade pela primeira vez em 1951, quando deu muito trabalho ao icônico Geoff Duke em uma corrida no circuito de Thruxton. A performance atraiu a atenção do chefe da Norton, que deu-lhe uma moto de fábrica. Logo em seguida, o britânico mudou-se para a italiana MV Agusta, onde ganhou o apelido de figlio del vento (filho do vento).
Em 1956, Surtees venceu o título das 500cc, o seu primeiro e da MV Agusta na Categoria Rainha. Quando a Gilera e a Moto Guzzi se retiraram das corridas no final de 1957, ele passou a dominar a competição nas duas maiores classes vencendo 32 das 39 corridas realizadas entre 1958, 1959 e 1960. Também se tornou o primeiro a vencer o Troféu Turista na Ilha de Man por três anos consecutivos. Um massacre.
Surtees tinha amizade com os pilotos britânicos de Fórmula 1 da época, como Reg Parnell e Mike Hawthorn, campeão de 1958, que após um jantar sugeriu: “você deveria tentar um carro. É mais seguro. Com ele você não pode cair!“. Surtees, de início recusou, mas insistentes pedidos o convenceram a fazer alguns testes sendo rapidíssimo logo de cara.
Em 1960, Surtees trocou definitivamente as motos pelos carros e causou espanto geral ao terminar em segundo lugar na primeira corrida de Fórmula 1 que disputou, na Inglaterra. Na segunda, em Portugal, cravou a pole position e estava a caminho de uma vitória tranquila antes de cometer um erro e ser obrigado a abandoná-la.
Foi em 1964 que Surtees atingiu o maior feito de sua carreira: ser campeão mundial de Fórmula 1. Pilotando pela Ferrari, o britânico conquistou duas vitórias decisivas naquela temporada e ficou com o caneco após uma final emocionante no GP do México. Até hoje, é o único piloto a chegar ao topo nas classes máximas do motociclismo e automobilismo, dois mundos completamente diferentes.
Depois, Surtees deu mais um passo ousado mudando-se para a Honda, que tentava a Fórmula 1 pela primeira vez. Após uma disputa eletrizante até a última curva da última volta com Jack Brabham, ele venceu o GP da Itália de 1967. Mas os japoneses não ficaram muito tempo nessa fase, retirando-se no final de 1968.
No início dos anos 1970, Surtees já era experiente o suficiente para criar a sua própria equipe de Fórmula 1. Nascia, a Surtees Racing Organization, primeiro com carros usados, depois com os seus próprios bólidos, batizados de TS (Team Surtees). Mas ele logo percebeu que obter sucesso como gerente e como piloto era praticamente impossível àquela altura e pendurou o capacete em 1972.
“Eu não tinha ideia do malabarismo financeiro que ele [Enzo Ferrari] precisava fazer. Eu só me dei conta disso quando eu passei a ter os mesmos problemas no gerenciamento da minha própria equipe”, disse anos mais tarde. “Muitas das decisões do sr. Ferrari não se baseavam no que fosse melhor para as corridas, mas para levantar o dinheiro necessário para correr.”
Para o seu lugar no cockpit, Surtees teve mais uma ideia arrojada: trazer Mike Hailwood, o icônico piloto britânico que já acumulava nove títulos mundiais de motociclismo em diferentes classes. “Mike The Bike”, como era conhecido, já havia disputado algumas corridas de F1 entre 1963 e 1965, mas agora também queria mudar-se em definitivo para a categoria.
Ousado e carismático, Haiwood logo se tornou um dos rostos da F1 no início dos anos 1970. O britânico estava na disputa pela vitória em sua primeira corrida de Fórmula 1 nessa nova fase, o GP da Itália de 1971, que por anos foi a corrida mais disputada de todos os tempos. Apenas 0,61 segundos separaram os cinco primeiros, com Hailwood em quarto, 0,18s atrás do vencedor Peter Gethin.
O GP da Itália, pelo jeito, dava sorte à Surtees, porque no ano seguinte, 1972, Hailwood estava novamente no pódio, em segundo lugar, atrás apenas do vencedor Emerson Fittipaldi, que vencia nessa corrida, o seu primeiro título mundial de F1. Esse também foi o melhor resultado da equipe Surtees.
O Brasil, que despontava na F1 nessa época, também tem uma participação nessa história. John Surtees foi um dos primeiros a reconhecer o talento de José Carlos Pace, o mesmo que batiza oficialmente o autódromo de Interlagos. “Moco” correu pela equipe entre 1973 e 1974, tendo como melhor resultado um terceiro lugar no GP da Áustria e duas voltas mais rápidas.
O Team Surtees, no entanto, nunca conseguiu passar de ser uma equipe média, debatendo-se constantemente com problemas financeiros. John Surtees também tinha fama de difícil e desentendeu-se com alguns pilotos, que passaram a correr em outras escuderias. O Pace, por exemplo, mudou-se para a Brabham onde venceu o GP do Brasil de 1975 e entrou para a história.
A medida em que a década avançava, os custos aumentavam e as coisas foram ficando cada vez mais difíceis para John Surtees. Em 1976, ele voltou a causar polêmica ao estampar em seus carros o patrocínio da London Rubber Company, dona da Durex, marca de preservativos masculina. Na conservadora Inglaterra dos anos 1970 isso não era aceito como hoje e a visibilidade dos carros sofreu boicote.
“No que diz respeito à BBC, um logotipo visível da Durex era totalmente inaceitável para exibição em família“, disse o lendário narrador britânico Murray Walker, em sua autobiografia. Incrivelmente, o canal televisivo estatal se recusou a transmitir a corrida já que Surtees, por sua vez, havia se negado a retirar os adesivos dos carros perdendo de transmitir a vitória do ídolo da época, James Hunt.
“Eu disse a eles que teríamos que sentar e fazer isso de uma maneira muito saudável e apresentável. Eu pensei que causaria um rebuliço, mas o fato é que não havia nada desprezível nisso e não estávamos quebrando nenhuma regra“, lembrou Surtees. “Isso revitalizou a equipe e deu a ela uma segunda chance.“
Surtees continuou a contar com bons pilotos, como John Watson, Vittorio Brambilla e Alan Jones, este último campeão mundial de 1980 pela Williams. Mas eles não impediram que a equipe ficasse sem fundos ao término da temporada de 1978, após 122 corridas de F1 disputadas. Eles até continuaram em outras categorias em 1979, mas não havia mais dinheiro.
É uma pena que a carreira de Surtees tenha acontecido em uma época pouco televisionada, pois os seus feitos são notáveis até hoje: sete títulos mundiais de motociclismo, outro no mundial de Fórmula 1, além da manutenção de uma equipe própria que chegou ao pódio. É o único piloto que conseguiu transitar tanto no automobilismo quanto no motociclismo com o mesmo respeito.
Outros pilotos de motos, como o tetracampeão Eddie Lawson tentaram a sorte em quatro rodas, mas ninguém chegou nem perto do sucesso de Surtees. Valentino Rossi esteve muito perto de trocar a MotoGP pela Fórmula 1 no auge, em 2007, onde correria pela Ferrari. O acordo, contudo, não se concretizou e tudo não passou do campo da especulação.