Após sofrer um terrível acidente nos treinos para o Grande Prêmio da Holanda de 1992, Mick Doohan quase perdeu sua perna direita. Mas o australiano deu a volta por cima para ser pentacampeão das 500cc.
Doohan é um legítimo representante da escola australiana de pilotos, caracterizados pelo estilo áspero, quase rude, tanto na comunicação pessoal, quanto na pilotagem. Esta, inclusive, é muito particular, mantendo a perna fechada para um maior ângulo de inclinação, que podia chegar a impressionantes 75º.
Primeiramente, Doohan se destacou no Campeonato Australiano de Superbike, evoluindo em seguida para o WorldSBK, onde venceu três corridas em 1988: as duas baterias do GP da Austrália e outra no Japão. Atenta, Honda não demorou a contratá-lo para ingressar nas 500cc em 1989.
Em 1992, Doohan liderava o campeonato com 53 pontos de vantagem para Kevin Schwantz (Suzuki). O então bicampeão Wayne Rainey (Yamaha) vinha apenas em terceiro e naquele ritmo o australiano poderia ganhar o título com quatro rodadas de antecedência.
Mas a sorte virou no Grande Prêmio da Holanda. Nos treinos livres, ele já havia sofrido uma queda, sem maiores consequências, correndo a pé cerca de um quilômetro até os boxes, onde dispensou um exame médico: “corri dez minutos a pé e sobrevivi, não preciso de exames”, disse.
No dia seguinte Doohan caiu novamente, possivelmente ao passar por uma mancha de óleo. A moto rolou por cima de sua perna direita e ambos foram parar na caixa de brita, com o piloto sem conseguir se levantar. Ao chegar ao hospital, constatou-se uma fratura distal com deslocamento da tíbia direita.
Sua única preocupação, no entanto, era com o campeonato: “Eu estava pensando em como poderia voltar a andar de moto, qual seria a solução mais rápida”, disse. Assistido pelo médico chefe Claudio Costa, foi decidido que Doohan seria operado ali mesmo na Holanda, uma decisão que se revelou desastrosa.
“Eu perguntei ao médico local, quem era o melhor cirurgião ortopédico na Holanda. Sua resposta foi : ‘todos nós estudamos na mesma faculdade, por isso somos todos igualmente bons.’ Eu achei uma resposta estranha, mas decidi ir em frente com ele. E foi uma má escolha”, relembra Claudio Costa.
Doohan foi por um médico que não tinha muita compaixão com pilotos. Segundo ele, suas lesões eram autoinfligidas. Ao invés de corrigir suas fraturas com uma tala, o médico optou por utilizar placas e parafusos, um equívoco. Para completar, foi lhe aplicado uma anestesia peridural, deixando o piloto acordado durante o procedimento cirúrgico.
“Durante a operação, eu podia sentir ‘a escavação’ em meus ossos, então eu pedi para dormir totalmente. Quando Costa veio me ver na manhã seguinte, perguntou se eu podia sentir meus dedos e eu não podia, então soube que algo estava errado”, relembra Doohan.
Doohan agora estava sofrendo os efeitos da temida Síndrome Compartimental, um aumento da pressão em uma região específica do corpo, o que ocasiona a diminuição do fluxo sanguíneo. Em outras palavras, sua perna não estava recebendo a quantidade de sangue necessária e estava morrendo.
“Eu tive que pedir para retirar as bandagens das minhas pernas, pois tinha começado a sentir cheiro de carne podre”, disse Doohan. “O médico estava falando com Costa e começaram a discutir quando o médico disse que teria que amputar a perna se ela não melhorasse dentro de 24 horas.”
Costa, vendo a negligência dos médicos holandeses não teve mais dúvidas: era preciso tirar Doohan daquele hospital. O médico reservou uma UTI móvel em um avião e eles foram para sua clínica na Itália. Ele não entendia uma palavra de italiano e Costa não falava inglês.
Doohan agora sabia que sua recuperação seria muito mais lenta do que se imaginava. Mais do que isso: não havia qualquer garantia de que pudesse subir numa moto novamente. Ainda assim, o piloto se agarrou a essa esperança como forma de motivação.
“Foi um alívio sair de lá, era um lugar ruim. Costa estava preocupado porque o meu nível de sangue caiu tanto [em uma tentativa desesperada de melhorar a circulação] que os meus órgãos internos estavam em risco de colapso”, revelou Doohan. “Esse foi o primeiro obstáculo que eu tive, estabilizar o organismo. Então pude ver o que fazer com a minha perna. A única coisa que me motivava era voltar à pista e tentar manter a minha liderança no Mundial.”
Doohan chegou até a fazer sessões diárias numa câmara hiperbárica a fim de aumentar os índices de oxigênio em seu sangue, mas a perna continuava em mau estado. Foi quando Costa tentou uma solução incomum: usar o fluxo de sangue da perna esquerda para manter viva a direita. O médico costurou uma perna na outra, unindo-as. Assim elas permaneceram por 14 dias.
Felizmente a circulação da perna direita foi restabelecida e o australiano pode, enfim, começar a recuperação. Apenas oito semanas após o acidente, Doohan estava novamente em cima de sua Honda para disputar o Grande Prêmio do Brasil, penúltima etapa do Mundial, em Interlagos.
Apesar de mal conseguir ficar de pé, não ter sensibilidade do joelho para baixo e não movimentar o tornozelo (impossibilitando o uso do freio traseiro), Doohan queria a todo o custo marcar pontos para sustentar a liderança do campeonato que ainda era sua. Chegou em 12ª mas, para o seu azar, o sistema de pontuação havia mudado naquele ano e apenas os dez primeiros pontuavam.
Na África do Sul, muito melhor preparado, Dohhan chegou em sexto, mas Wayne Rainey (Yamaha), com o terceiro lugar conseguiu pontuação suficiente para seu terceiro título consecutivo. “Eu me senti um merda”, confessou mais tarde.
Doohan levou cerca de um ano para ter alguma sensibilidade na perna. Assim passou longe dos primeiros lugares em 1993, temporada que vinha sendo liderada por Rainey até o GP de San Marino em Misano. Ironia do destino: em uma queda de proporções muito menores, o norte-americano fraturou seriamente a coluna ficando para sempre preso e uma cadeira de rodas.
Para o GP do Japão a Honda modificou o sistema de frenagem traseiro da moto, que era parte fundamental da pilotagem de Doohan. Agora ele seria acionado pelo polegar esquerdo. Ficou muito melhor e as vitórias não tardaram a recomeçar.
“Sim, houve momentos em que eu pensei o que diabos eu estava fazendo. Mas eu queria correr e sabia que se pudesse recuperar a força, voltaria a vencer, porque antes da queda eu estava dominando o campeonato, mesmo com todos os bons pilotos na pista. Então eu sabia que se eu me recuperasse 90% teria uma boa chance de ganhar novamente. Isso me manteve lutando”, explicou.
Após outra queda em Laguna Seca, Doohan foi atendido por um médico californiano chamado Kevin Louie. O cirurgião tratou de colocar a sua perna definitivamente no lugar e ficou impressionado com a persistência e resistência à dor do piloto: “Mick tomou muito pouca medicação para dor, a resistência dele é quase sobre-humana” disse.
Mas Doohan não é tão heroico ao falar de si mesmo. Ele explica sua aversão por analgésicos dizendo que eles poderiam comprometer sua concentração e prejudicar os reflexos numa corrida: “Essa é a principal razão para não tomar analgésicos. Não porque eu fosse um super-homem, mas porque queria estar forte mentalmente para voltar às competições rapidamente”, explicou.
Doohan venceu o primeiro mundial em 1994 e outros quatro seguidos em 1995, 1996, 1997 e 1998. Apenas Giacomo Agostini tinha feito uma sequência como essa até então. Valentino Rossi e Marc Márquez o superaram em número de títulos, mas nenhum deles o fez de forma cinco vezes consecutiva.