No Paris-Dakar de 1987, a rivalidade entre Hubert Auriol e Cyril Neveu chegou a níveis extremos, como correr com os tornozelos fraturados. Conheça essa história de sangue, suor e lágrimas aqui.
Nos anos 1980, era preciso ser meio maluco para encarar o Paris-Dakar. Sem sofisticados sistemas de navegação, equipes de resgate limitadas e veículos comuns adaptados para a competição, acelerar no Deserto do Saara era, de fato, uma grande aventura rumo ao desconhecido. Ainda mais de moto, onde você podia se encontrar verdadeiramente sozinho no meio do nada.
Em 1987, o Paris-Dakar estava maior do que nunca. Era a primeira edição sem o seu criador, o carismático Thierry Sabine, morto em um acidente de helicóptero em 1986. Por causa dele, o evento tinha um apelo especial na França, de onde vinham a maioria dos pilotos e equipes.
Em todo o país, famílias que não tinham absolutamente nenhum interesse em automobilismo sentavam-se todas as noites para assistir à batalha de seus heróis. Nesse terreno fértil nasceram diversas rivalidades, e no motociclismo havia a de Hubert Auriol (Cagiva) contra Cyril Neveu (Honda).
Como de praxe, os dois eram completamente opostos: Auriol era alto, bonito, educado e nascido nos escalões superiores da sociedade francesa. Criado na Etiópia e fluente em inglês, tinha o apelido de “Le Bel Hubert” e tinha um charme fácil que mulheres e patrocinadores adoravam. Diziam até que era parente de Charles De Gaulle.
Neveu, por outro lado, era pequeno, franzino e de origens humildes. Tinha um linguajar básico, mesmo em francês e naturalmente não falava uma palavra em inglês. Mas, no final das contas, ambos tinham o necessário para colocar uma motocicleta na ponta de uma tabela de classificações.
Neveu venceu as primeiras edições em 1979, 1980 e 1982 com Yamaha e Honda. A vez de Auriol chegou em 1981 e 1983 com uma BMW, antes de passar para a pequena Cagiva em 1985. Havia todo um significado simbólico por trás disso. Era como no mito de Davi (as então pequenas fabricantes europeias) contra o poderoso Golias (as gigantes japonesas).
Na época, a Cagiva pertencia à Ducati e estava profundamente envolvida com esportes a motor. Para o Paris-Dakar, eles desenvolveram a Elefant 850, caracterizada por sua grande carenagem que cobria o tanque. O motor de dois cilindros refrigerado a ar fornecia 80 cv e chegava a 185 km/h.
A Honda também estava nesse negócio para ganhar e desenvolveu a NXR 750, moto que inspiraria a primeira Africa Twin. Também bicilíndrica, a máquina japonesa desenvolvia 75 cv e, com apenas 185 kg a seco (240 kg em ordem de marcha), atingia velocidade máxima de 175 km/h.
Auriol e Neveu eram amigos de Thierry Sabine e estavam dispostos a vencer a edição 1987 em sua homenagem. Naquele ano, a disputa se estendeu por 8.315 km e 22 dias, cruzando a França, Argélia, Níger, Mali, Mauritânia e Senegal, em meio a bandidos armados e grupos terroristas.
Os dois homens trocaram de lugar no topo da classificação durante boa parte do rali. Mas após uma série de erros de navegação de Neveu, Auriol se afastou na liderança e na penúltima etapa, o piloto da Cagiva tinha uma vantagem de 12 minutos sobre o adversário da Honda.
Determinado como sempre, Neveu acelerou como nunca e completou o estágio em primeiro lugar. Mantendo um olho no cronômetro e o outro no horizonte, o piloto da Honda esperava ter reduzido a vantagem o suficiente para ter chances na última etapa.
Os minutos foram passando e nada de Auriol aparecer. Logo ficou claro que algo havia acontecido. O competidor Marc Joinea chegou dizendo que o ajudara a se levantar após um acidente. Finalmente o piloto da Cagiva apareceu, mas o que aconteceu a seguir é quase indescritível.
Auriol chorava de dor debaixo do capacete. Aos prantos, com as câmeras rodando bem ao seu lado, o francês dizia: “Estou com os dois tornozelos quebrados!” Os médicos cortaram suas botas e viram que um deles, inclusive, estava com fraturas expostas.
Como Auriol conseguiu chegar ao posto de controle é um mistério. Mas não dava para continuar. “Cyril é muito forte”, dizia em meio às lágrimas. Todo mundo parou para ajudá-lo: o diretor de corrida Rene Metge, o bicampeão Gaston Rahier e até o próprio Neveu.
Passados 35 anos, toda a cena pode ser vista agora no YouTube (abaixo) e não perdeu nada do seu impacto inicial. Farto, Auriol disse que nunca mais subiria em uma moto de corrida novamente. Carlo Pernat, então diretor da Cagiva, confessou que viveu a emoção mais forte de sua carreira. “Diga a Claudio [Castiglioni dono da Cagiva] que vencemos as japonesas“, disse antes de subir no helicóptero.
Fiel à sua palavra, Auriol nunca mais correu de moto. Mas voltou de carro e venceu a edição 1992, quando tornou-se o primeiro piloto a conquistar vitórias em ambas categorias. O triunfo de Cyril Neveu em 1987 também foi o seu último. Ambos eventualmente mudaram para a organização com considerável sucesso.